sábado, 28 de março de 2015

Triste do bicho...

Meu feijão furado e Arraes após deposição: Golpe de 64
Lá em casa se comia feijão furado, naqueles tempos! É preciso lembrar todos os estragos que fizera em nossas vidas o golpe militar de 1964. Era ainda criança, contava nove anos de idade, mas lembro de ouvir pelas ondas da Rádio Jornal do Commercio o governador Miguel Arraes de Alencar “esmurrando” seu birô de trabalho e alardeando aos quatro ventos que não renunciaria. Só sairia do Palácio do Campo das Princesas – morada governamental – pela porta que entrara ou preso. Não sei se saiu pela porta da frente, mas saiu em um fusca detido que fora. Antes, porém, deixou sua mensagem lida aos microfones da JC: “Sei que cumpri até agora o meu dever para com o povo pernambucano, sei que estou fiel aos princípios democráticos e à legalidade e à Constituição que jurei cumprir. Deixo de renunciar ou de abandonar o mandato, porque ele está com minha pessoa e me acompanhará enquanto durar o prazo que o povo me concedeu e enquanto me for permitido viver”, disse Arraes já deposto. Aquela saída de fusca não ofusca sua trajetória, ao contrário do que muitos pensam.
Líder sindical que era, meu pai teve que fazer estripulias para se ver livre dos militares. Funcionário efetivo da Rede Ferroviária do Nordeste, teve salário e outros ganhos reduzidos. As intempéries daqueles tempos não foram favoráveis ainda mais com a calamidade instaurada pela enchente de 1966, onde o Rio Tejipió arrastou o barraco que nos abrigava. Aquilo não era moradia, era esconderijo, à beira do riacho, local a esmo e de difícil acesso. Foi ali que vi ir embora, de uma vez por todas, a vida tranquila que levávamos.
Algum tempo mais tarde fui entender o porquê dos meus pais não frequentarem a feira-livre de Cavaleiro, distrito de Jaboatão, antes algo tão corriqueiro. Eu, filho mais velho dos homens, era incumbido de “fazer a feira”. Feijão, batata doce, farinha e muita piaba seca. Nada mais havia na lista que minha mãe me dera àquela empreitada. O feijão encomendado era de qualidade duvidosa, mas estava de acordo com o orçamento. Era dureza ter que comer aquela “gororoba” com uns bichinhos saídos dos grãos cozidos, temperados sei lá com quê. A grita era enorme protestando o prato servido quase sem atrativo. A piaba salvava os cardápios do café da manhã, almoço e janta. Daí o protesto:
- Mamãe, quero esse feijão não. Tem bicho dentro!
- Coma calado, meu filho: Triste do bicho que o outro engole!

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