terça-feira, 14 de outubro de 2014

O assento, a fila, a gentileza

“Tolstói, o que você mais admira em seu pai?” Esta foi a indagação feita ao meu filho, aos nove anos por sua madrinha. Em um fim de semana, década de 90, minha comadre Socorro Rocha dá-me um belo presente deixando-me os olhos marejados de contentamento. Não era importado, não tinha invólucro pomposo nem era de grife, mas trazia enorme significado. Sem ainda saber do que se tratava, perguntei, então, o que teria a me dizer, uma vez que insinuava me contar algo de muito valioso. Recorro a este tema não apenas pela recordação maravilhosa, mas muito mais pelo conteúdo daquela conversa, reflexo de algo trivial em meu cotidiano, lá pelas bandas de Recife, pedaço de chão de velhas e boas lembranças.


Por lá Tolstói vivenciou, ainda criança, os altos e baixos de uma metrópole onde tudo era grande: As opções de lazer, o movimento de pessoas, as filas pra tudo, os deslocamentos, tudo! Ele, como toda criança, observava - sem que eu imaginasse o quanto – o meu jeito de lidar nos coletivos, em filas de banco, padaria, cinema... Ele observava e assimilava o que via, minhas ações cotidianas, corriqueiras chamavam a sua atenção. Com certo suspense a comadre Socorro Rocha diz que eu não imaginava o quanto influenciará positivamente a Tolstói com aqueles meus gestos simples. Apressei-me, então, a perguntar o que de tão interessante ela tinha para mim, e me relata a resposta do meu filho à sua indagação: “Tolstói, o que você mais admira em seu pai?” e ele, segundo a madrinha, responde: “Acho legal o meu pai respeitar os lugares nas filas; pegar os pacotes das pessoas nos ônibus; dar seu lugar no ônibus às mulheres grávidas e aos idosos”.

Pronto! Aquele relato me desmanchou. Hoje sinto falta dessa troca de gentileza. Desde o primeiro dia que uso o “ônibus dos estudantes” cedo o assento (quando sentado) mais ou menos na metade do percurso. Apenas em três oportunidades não o fiz por estar adoentado, em uma delas; estar exausto de sono, em outras duas. Isto sem falar no respeito à fila. Quando é aberta a porta do coletivo dá-me a impressão de que aquele será o último das nossas vidas. Os rapazes, principalmente, não tratam com gentileza as meninas e, elas, por sua vez, também não são gentis umas com as outras. 

Ao contrário do que muitos pensam, há exceções, claro, mas tão poucas quanto à falta de gentileza da maioria.

domingo, 12 de outubro de 2014

Viagem no tempo III


O Rubem Alves dizia que não se deveria voltar a um lugar tentando encontrar o passado: “O passado não está mais lá...” A Belo Jardim daqueles tempos não é e nunca mais será a d’agora. Lá, bem distante daqui, ainda em finais da década de 60, havia muita festa para comemorar o Dia de São Sebastião, em 20 de janeiro, seu santo padroeiro. Eu não entendia porque minha mãe me vestia com uma túnica e me acompanhava descalça como eu. Soube mais tarde que era cumprimento de promessa à cura de um mal que me acometera. Tudo aquilo me chamava a atenção com a procissão de fiéis, subindo e descendo ladeiras, seus cânticos sempre acompanhados pela Cultura e Filarmônica. Às janelas viam-se pessoas disputando lugares de olhos fixos no cortejo.


Trago na memória aqueles músicos uniformizados. A Cultura e a Filarmônica eram uma festa à parte. Afora a festa sagrada havia as retretas onde essas bandas de música abrilhantavam a comemoração profana. A Praça da Matriz lotada não oferecia mais lugar para tanta gente. O parque de diversão era um grande atrativo para crianças e jovens que disputavam os carroceis, botes e roda-gigante. O algodão-doce, os roletes-de-cana, as maçãs-do-amor e as beiras-secas eram guloseimas maravilhosas a encher nossos olhos. Havia, ainda, o serviço de alto-falantes (difusora) a tocar os sucessos do momento e os recados de casais enamorados: “De alguém para você de saia branca rendada, nos cabelos duas tranças, na boca um batom vermelho, arreceba com amorrrr esta cançãaao”.

Ao contrário do que muitos pensam, nem tudo era assim tão belo. À noite, quando nós – as crianças – deveríamos nos recolher, minha tia Tina era encarregada de velar por nosso sono. Mas convocava o primo Edvaldo a exercer aqueles cuidados. Devia agradá-lo com algumas moedas ou guloseimas. Aí toda aquela festa perdia seu encanto. Meu primo, com seus oito anos a mais, deixava toda a casa na escuridão e, com um lampião de gás se achegava às nossas redes, revirava as pálpebras dos olhos e nos assustava com um grito de “morrrrra onçaaaaa”, cujo significado eu nunca soube, o medo nunca esqueci. Esses episódios, aos meus pais e tios, nunca os contei. Era de me arrepender, segundo o primo que, afora isso, nos contava estórias fabulosos que enriqueceram, e muito, nosso imaginário.

De volta à estação ferroviária, o “Trem da Serra”, seu apito e fumaça denunciavam um adeus e até logo!