sábado, 28 de fevereiro de 2015

Mel, farelo e minhocas

Visitas ilustres as que recebo neste sábado com céu de brigadeiro. Chapolin estava intramuros, faz algum tempo. Seis meses, creio sem dar ar de sua graça. Escondia-se pelos quintais. Hoje, não mais que de repente, ele amanhece banqueteando sobras de Coca, a gata adotada. Chapolin talvez tenha pressentido a chegada do meu amiguinho Arthur que hoje me trata na qualidade de tio. Vem das bandas do Recife para habitar em Campina Grande e resolve me presentear com sua presença pra lá de bem vinda.
Eu, Arthur e Chapolin: Os três patetas!
Então resolvi fazer um périplo pelos cantos de toda a casa. Mostrei como funciona o sistema de abastecimento e reuso da água. Para ele tudo era diversão, até essa coisa chata de encanamentos, filtração e reaproveitamento. Faço questão que as crianças adentrem ao mundo do consumo responsável. Elas são, sem dúvida, os melhores multiplicadores.
E Arthur estava ali, firme tentando me agradar. Sabia ele que logo estaríamos no campo das brincadeiras. Logo descobriu uma motocicleta - prestes a aposentar - e mandou ver. Saiu à moda Fred Flintstone “pedalando” com os pés no chão. Correu, pulou, fez dodói num dedo. Descobriu meu violão e sugeriu uma cantoria. Iniciei com “Meninos”, composição de Juraildes Cruz e a riquíssima interpretação de Xangai.
Vi que Arthur se deliciara com o que ouvira, eu muito mais com o que vira. Ao final da canção, a surpresa: - Repete, tio. Então cometi o pecado de todo adulto: - Você gostou mais de que parte? E ele responde sem rodeios: - Dos passarinhos. Aquele pedacinho de gente me surpreendera com seu gosto. Arthur acabara de demonstrar uma sensibilidade não muito comum nos dias de hoje, ainda mais em se tratando de música. Ele fez referência a “Quero acordar com os passarinhos / Cantar uma canção com o sabiá”, um belo trecho daquela composição. E por falar da boa música recebo, no exato momento em que fechava o parágrafo acima, notícia das mais auspiciosas. Outro sobrinho meu, Luis Carlos, foi aprovado na OSR - Orquestra Sinfônica do Recife. Eu o levei pelas mãos ao Conservatório de Música, ainda em sua adolescência. O pus na estrada das claves, do sol, do som e dos sonhos.
Na despedida de Arthur, à janela do ônibus, mais uma pérola: - Tio, cuide dos passarinhos!
Encerro feito pinto ciscando em mel, farelo e minhocas.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

As Brumas ou a cor do vestido?

"... Longos braços de rocha negra, áspera e alcantilada, estendiam-se pelo oceano, a partir da costa. Quando o sol brilhava, a paisagem podia ser dourada e brilhante, o céu e a água luziam como o monte de jóias..." Pura poesia e, adiante, "Uma pedra-da-lua que por vezes refletia o brilho do céu e do mar; mas hoje, no nevoeiro, até mesmo a jóia parecia opaca".
Lia o texto acima, passava da meia-noite, já não era ontem, era hoje. Ouço, então, aquele sinalzinho peculiar dessas parafernálias cibernéticas indicando que alguém (de algures) me enviara mensagem. Havia passado parte da noite ruminando um texto filosófico, Filosofia Social e Política e, pasmem os mortais, queria refrescar a mente com algo leve, que me levasse ao sono e repouso merecidos. Mas e a mensagem! De onde viera e do que tratava? Esse drama não é comum nos dias de hoje, deve haver zilhões de pessoas imunes a ele por esse mundão afora.
Ler ou não ler: Eis a questão! Não me contive, chequei. “Qual é a cor deste vestido?”, era a coqueluche do momento. Preciso esclarecer para essas “tribos” que coqueluche é uma expressão já em desuso, usada para indicar algo de muito extraordinário e em moda. Mas coqueluche – a bem da verdade – é uma doença bacteriana que atinge o sistema respiratório cujas complicações - convulsões, pneumonias e encefalopatias podem levar o indivíduo a óbito. Mas vamos à pérola da mensagem:
“Tudo começou quando uma internauta postou em seu Tumblr Swiked a imagem abaixo com a pergunta: "Gente, por favor, me ajudem! Este vestido é branco e dourado ou azul e preto? Eu e meus amigos não conseguimos chegar a um consenso e estamos enlouquecendo com isso!". Não demorou para os comentários pipocarem no Tumblr da jovem e, claro, algumas palavras referentes ao vestido subirem nos Trending Topics Mundiais #WhiteandGold. No Brasil também apareceram as menções #TheDress e Preto”. "E você, que cor consegue enxergar?!”.
Eu, por mim, prefiro as brumas, sejam quais forem. Morrer, mesmo, não morri. Mas estive perto do tédio. Fui dormir com a leveza que imaginara após haver retornado à releitura. Hoje, bem cedo, ao tomar o ônibus dos estudantes, lá estava o assunto em pauta: Nem cálculo, política, religião ou futebol discutiam: “Qual é a cor deste vestido?”, pra não dizer que não falei de flores.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Equivale

Sempre que escrevo algo a respeito ou simplesmente lembro Jerimum & Xiquexique, sou cobrado pelos cantos das ruas e nos becos da cidade. Há um certo saudosismo, ainda, no que concerne ao “Ribuliço na Fêra”, iniciado com leituras de cordéis, em plena feira livre de Esperança, tendo chegado ao rádio em um formato divertido e informativo. Lá se ouvia de tudo um pouco. A música genuinamente nordestina, a poesia matuta, o repente, o coco de embolada e o cordel eram apresentados em uma mescla com o humor circunstante da dupla.
Havia as sessões Isto quer dizer – tratava do significado de palavras por conta e risco do dicionário Aurélio; Se eu soubesse eu te dizia – dava ênfase às notícias chamativas da semana; Pra que é que serve – servia para lembrar dos chás das nossas avós, uma tradição passada às novas gerações; Tá na internet – algumas bizarrices contidas em sites apropriados; Taqui pra tu – denunciava ou repudiava atitudes, geralmente de políticos, vindas à tona pela grande mídia; Vamos mudar de assunto – quando a denúncia ou repúdio tomava grandes proporções refreávamos nosso ímpeto com a tal vinheta. Li, aqui mesmo, um comentário de Evaldo Brasil, cobrando uma volta à radiofonia paraibana, em “Água”, post do último dia 24 de fevereiro. Foi aí que resolvi recorrer a um conto de cunho informativo por obra e graça dos dois estrupícios:
- Tais fazendo o que aí, Xiquexique?
- Tu num tais vendo eu agarrado com lápis e papel, não?
- Vendo eu tô, sabendo o que é, não!
- Eu tô calculando, home...
- E tu és Malba Tahan! O homem que calculava?
- Sabe o que é? É que um acre equivale a 4.046 m2
- Num sei o que é acre, nem sei se é quadro ou redondo...
- Anota aí. Já um hectare equivale a 2,5 acres...
- Tá ficando complicado.
- E 100 hectare equivale a 1 Km2...
- E esse tal de equivale. Que danado é isso?
- Tá no Aurélio, rapaz. E significa “Ser igual no valor, no peso ou na força; Ser equivalente”.
- E tudo ao quadrado, é? Aí é que tare!
- Equivale a muita terra, né Jerimum?
- Ser dono disso tudim é que vale, Xiquexique!
- Equivale a quê?
- É que vale a pena!

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Só Freud explica

Publiquei “Sorrateiro”, dia 18 do último janeiro: “... Era um gato! Deu as caras quando da visita de uns amigos recifenses. ... Eu, confesso, sou arredio a qualquer animal que me deixe propenso ao apego. No passado, ainda criança, convivi com Tango, mais tarde vieram Rex, Langoni, Frank, Sinatra e Bilú, todos da família canina. Luma, Gregor e Mimi foram os felinos também de época remota. Xande, o último felino, aceitamos de presente com muita relutância de seu Silvestre. Mari, hoje irmã Mariângela, convenceu o avô a criar o gatinho cheio do dengo de toda a casa até que foi ‘resgatado’ por sua mãe, sumindo pelos telhados da Maternidade São Francisco de Assis. Todos sentimos, choramos o sumiço de Xande, o apego é inevitável”.
A partir desse relato verão vocês que nada tenho de bisbilhoteiro, posto que Caco é como o batizei com alguma relutância intramuros. Só agora, pela bisbilhotagem de uma amiga descobrimos sua verdadeira identidade. Caco é Coca. E a descoberta - só Freud explica -  ainda me chega com a ressalva do “Prepare-se: Você será avô!”. Dei de ombros, nada muda. E tudo muda! Mesmo arredio fui dando atenção, alimentando. Ele (que agora é ela) foi se encostando, já arrumara lugar para dormir, se espreguiçar em minha rede e nos alentar com seu miau, miau tão cativante, nem sempre à busca de comida, mas carinho.
Ocorre que não posso me apegar a ela. Minha frequência afetiva deverá ser limitada ou darei com os burros n’água, como me ocorrera antes. Ela vem de além muros, não tem uma presença que justifique a doação que reluto em dar. De uma hora pra outra ela some, simplesmente. Pronto!
Prefiro manter as coisas como estão. Caso apareça com aquele seu miau, miau tão cativante retribuo da melhor forma possível. Posso até lhe fazer uns cafunés. Fora disso nada a combinar. Que ela siga com seu jeito estranho de só aparecer quando lhe aprouver. Isso causa-me espanto, às vezes, mesmo assim será amada. Sempre que voltar, como naquela canção de Lancellotti, ao contrário do que muitos pensam!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Água

Aqui e acolá fico lembrando das peripécias de Jerimum e Xiquexique. Muita coisa já vivenciaram nestes quase 15 anos de parceria e andanças mundo afora. Foram mais de 30 peças publicitárias para TV; alguns para rádio, além de outros trabalhos onde o humor estava presente como parte preponderante. Tornei-me funcionário público municipal e vi tolhida a possibilidade de “sonhar” com esses encontros mais que prazerosos em busca do humor e o consequente riso. Há alguns trabalhos por se dar, coisas que ainda não saíram do papel, tiradas rápidas com um time preciso.
Dentre os trabalhos engavetados há um diálogo sem malícia, destinado a um público heterogêneo e carente do humor simples, despretensioso e com um viés de pureza. No diálogo Jerimum aparece se espreguiçando:
- Êita sono da mulesta!
Mote para a entrada de Xiquexique:
- É por isso que tu tais com cara de arripunado, Jerimum?
- Passei a noite sem sono. A mulé foi quem gostou!
- Te aproveitasse, num foi?
- Pra contá históra e fazê cosca. A bichinha gosta!
- Já eu passei a noite sonhando...
- Cum quem?
- Com uma cobra.
- Tô intendendo. Então joga no bicho!
- Eu jogo o quê?
- Me deixa ver... Joga águia.
- Águia! Por quê, Jerimum?
- Porque águia come cobra, menino.
- Vixe! E se eu sonhar cum capim?
- Aí tu joga vaca. Porque vaca come capim.
- Mas me diz uma coisa...
- Digo. Diz o que é pra dizer...
- E se eu sonhar com minha casa pegando fogo?
- Aí tu joga água!

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Rendi-me à modernidade!

Duas quengas de côco - grafado como se grafava -, duas caixas de fósforos, ou duas latas de leite, um cordão bem estirado, colocado ao pé-de-ouvido era suficiente para a criançada se comunicar. Isso, claro, fazia parte do nosso universo infantil, em um tempo onde as comunicações não tinham a instantaneidade de agora. Vivíamos catando esses trecos e barbantes para nossas proezas imaginativas. Perdia-se tempo, ócio prazeroso, com algo a um só tempo tão significativo simplório.
Mas tem o lado dessa história. Já havia velocidade de comunicação lá no Império Romano, onde os pombos-correios mantinham César e seus comandantes informados sobre as invasões e a movimentação inimiga. Aquelas aves, 6000 pombos treinados, cobriam toda a costa do Mediterrâneo levavam e traziam suas informações atingindo 60kh/h. Bem mais veloz que o provedor de internet que ora utilizo. Lá pelos 300 anos a.C., no Egito, os pombos também serviram à comunicação. É fato que nas duas grandes guerras mundiais eles estiveram a serviços de algum exército. Os tempos mudaram, a comunicação evoluiu e o telégrafo, por muito tempo, foi revolucionário. A comunicação, creiam, estava por uns fios. Samuel Morse, seu criador, o patenteou em 1837, e o telégrafo elétrico surge com o código batizado com seu sobrenome, Morse.
Eu sou de um tempo onde a gente se dava por muito satisfeita usando o telefone do posto de Serviço. Havia fila e o recado vinha de bicicleta. E era uma festa aquela “instantaneidade”. Discava-se numa “roleta”, o aparelho pesava uns cinco quilos, a ligação cortava aqui e ali, mas não se perdia o encanto do contato. O rádio nos trazia as notícias mais longínquas com um som quase inaudível, ainda mais quando se tratava de copa do mundo, por exemplo. Depois surge a televisão, a vedete das comunicações por muitas décadas, antes mesmo da praga do embrutecimento coletivo.
Um dia desses vibrávamos com o advento do Orkut, depois substituído pelo MSN. A bem pouco tempo estivemos em plena lua-de-mel com o Facebook, hoje quase nocauteado pelo queridinho WhatsApp. Daqui a pouco, a se confirmar as previsões, a quarta guerra ocorrerá com arco e flecha, a quenga de côco suplantará o WhatsApp que hoje me venceu!

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cadeiras na calçada

O episódio da enchente do açude de Orós, no Ceará, é um marco na vida de muita gente. Lembro-me de pessoas ao pé do rádio lá de casa, vinham à busca de notícias advindas do Ceará. Àquele tempo morávamos na Rua Natividade Saldanha, em Cavaleiro, distrito de Jaboatão que muito tempo depois vem a ser Jaboatão dos Guararapes. Tempos mais tarde me informei que ocorrerá a 26 de março de 1960, em Limoeiro do Norte.
A data me serve como referência. Dali a pouco mudaríamos para o Totó, onde moramos numa casa bem espaçosa, cercas vivas no quintal e um jardim com flores diversas. Ouvi minha mãe responder à minha madrinha Tonhá numa conversa vespertina com cadeiras na calçada:
- E aí, comadre Do Carmo! Como é mesmo essa casa onde vocês vão morar?
- É uma casa bem espaçosa, comadre. Toda cercada e com um jardim bem florido. Tem até um pé de presente-bom!
Aquela expressão presente-bom ficou “zunindo” em meus ouvidos. Dormi e acordei “ruminando” aquilo no juízo. Deveria ser algo muito belo, imaginava. Chegou o dia da mudança que para nós era uma festa, não tínhamos a mínima noção do que era despedida nem o trabalho nas desarrumações e arrumações bem peculiares à empreitada. Logo nos acostumamos à nova vida e vizinhança. À esquerda tínhamos a família Ozório, seu Alberto e dona Carminha com três filhos e uma filha, todos crianças como nós. Certa vez uma bola nossa, de pequeno porte, embrenhou-se por entre a cerca de papoulas. Muito tempo se passou até que a encontramos, após uma poda, e fizemos festa naquele dia.
Meus pais, ao final daquele ano, talvez 1961, organizaram um pastoril natalino e eu fazia o papel do “véi”, só nos ensaios. A Rua ainda não contava com iluminação elétrica, mas tudo era conversado às noites de luar com cadeiras na calçada. As festas de Carnaval e São João aconteceriam dali pra frente com toda a vizinhança envolvida e participante. Quando escuto “Gente Humilde”, de Chico Buarque e Vinícius de Moraes, meu pensamento voa: “São casas simples com cadeiras na calçada...”.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Enganei meu pai, mas saiu caro!

Ontem, comemorando o "Dia dos Pais", puxei pela memória e lembrei um episódio com meu pai e alguns amigos num jogo de dominó. Era ainda criança travessa, ficava dando palpites em meio aos adultos, naquelas noites onde televisão era coisa rara não tendo tanta interferência em nossas vidas. Cadeiras nas calçadas, à tardinha e em noites de verão fazia parte do cotidiano, mesmo numa metrópole como Recife. Morávamos nos arrabaldes, conhecíamos toda aquela vizinhança, diferentemente de hoje, principalmente no que tange às habitações verticais. Quanto ao jogo de dominó lembro que enganei meu pai e dele levei uma carreira seguida de "peia". Escondi-me num pé de goiabeira. A mesma que serviu um cipó para meu pai ir à forra. Até os dias de hoje, nem mesmo em casa, sento em mesa de jogo qualquer.
Só sei que foi assim! Noite de céu estrelado e a brisa mansa, soprada dos coqueirais, era convidativa aos velhos e costumeiros tamboretes e um tabuleiro ao centro servia de aconchego às vinte e oito pedras brancas feitas de osso. Em “O mundo e suas voltas” certamente encontraríamos Ana Débora explicando que “essas pedras têm forma de paralelepípedo; Que o nome é provavelmente de origem latina ‘domino gratias’ que significa ‘Graças ao Senhor’; Que o jogo é provavelmente de origem chinesa atribuindo-se sua criação a Hung Ming, um santo soldado chinês que viveu de 243 a.C a 182 a.C”. Ana iria mais adiante, eu fico por aqui, preciso ir ao cerne da questão e explicar meu malfeito.
Já me introduzira entre os grandes jogadores da redondeza, fazia dupla com seu Flaviano, um mentiroso que jogava de verdade. Meu pai – o bom e velho Manoel Soares – fazia dupla com seu Mané Mago. Eles perdiam de cinco a zero e tudo indicava que levariam uma “buchuda”. Àquela altura do jogo eu contava apenas uma pedra na mão, prestes a bater. Seu Flaviano, meu parceiro, faz sua jogada; Mané Mago “toca”, faz o sinal característico de quem não dispõe de pedra que se encaixe ao jogo. Eu “bato”, mas permaneço calado. Não faço alarde da batida. Aí meu pai, crente que se livrara da “buchuda” explode num grito:
- Batiiiiiiiiiiiiii!
Eu abro as mãos sobre a mesa e, ironicamente, retruco:
- Como? Se eu não tenho mais pedras!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Mijei nas calças!

Princesa Isabel é uma pérola encravada no Sertão paraibano, na fronteira com Triunfo, Quixaba e Flores, municípios pernambucanos. Lá estive no limiar dos anos 80, onde conquistei amigos de vários matizes sociais. Lagoa de Cruz, um pequeno povoado, era onde buscava uma prosa sossegada com dona Úrsula, uma sábia mulher quase centenária, à época. Havia sempre uma história para contar, mas vivia apreensiva com a Guerra das Malvinas, naquele abril de 1982. Para ela era perigoso aquela guerra bem ali, nas ilhas Falklands, a apenas a 480 quilômetros de Buenos Aires. Decerto lembrara dos idos de 30, com sua Revolução e Princesa se tornando Território Independente!

“É preciso ter cuidado, Almeida, volte pelo aceiro da estrada, não deixe que ninguém o veja, nunca se sabe quando um canhão deles vai estrondar por essas bandas. Eu mesma não saio de casa. Fico aqui, com meu banquinho na janela. Qualquer coisa corro pra debaixo da cama, não vou esperar tempo ruim. Isso é o fim do mundo, já dizia Padim Ciço”. Aquela mulher demonstrava segurança no que falava e eu, mesmo sabendo da enorme distância entre o lugar dos conflitos e Lagoa de Cruz, levei algum tempo em minha volta para Princesa, pelos aceiros que me indicara. Sabia-se lá o que ingleses e argentinos possuíam em armamentos bélicos. Não tive medo, claro, mas duvidar integralmente de dona Úrsula, não iria arriscar. Era pra lá de sábia.

Volto a pé, uma boa caminhada à sede do município. Esqueço a prosa com dona Úrsula, vou me deliciando com o cheiro de terra molhada, caíra uma chuva trazendo alegria e um tanto de verde à paisagem ressequida. Queria ver a água sob a ponte que estava logo ali, já em meu campo de visão. Algo me chama a atenção. Não sabia discernir o que fora, mas vira um corpo se mexendo, ora pra baixo, ora para cima, como se fora alguém à minha espreita. Parei! Lembrei dos conselhos de dona Úrsula e das trincheiras da Revolução de 30. Não havia em mim vontade nem coragem de seguir. Era um escuro de dar medo. Não via um farol de automóvel que me socorresse do pânico instaurado.

“Correndo o bicho pega, ficando o bicho come”, resolvi de olhos semicerrados enfrentar o perigo iminente. Fui chegando perto, trêmulo, desabei. Ri como poucas vezes sorrira. Uma jumenta servia-se da vegetação que se levantara no aceiro do asfalto. Aquilo servira de janta para ela, pânico para mim. Só agora trago à tona aquele episódio sórdido. Ao contrário do que muitos pensam, mijei nas calças!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Ela outra vez

Lembram daquela colega que gosta de falar difícil? Pois é, mais uma vez nos dá um mote e tanto para este conto. Seu bilhete, explicando a falta ao trabalho, não deixa dúvidas de que não está bem. Ao contrário do que muitos pensam não é só Jerimum que tem mania de querer dificulitar na fala. Há uma glébia de gente que se esmera na polidez vernacular. Há vocábulo pra todo gosto, o problema está em encontrar a palavra certa para aquilo que se precisa transmitir. Daí por diante é por conta e risco de quem comunica.
Como ela mesma informa, nas linhas e entrelinhas, foi o calor desenfreado do trio do momesco que a deixou meio molenga, segundo se queixa. Tomou emprestado um permômetro e certificou-se dos 38 graus “centrífugos” à sobra, nesta segunda-feira de Carnaval, algo quase isurpotável para um ser humano. Seu gato, enfatiza, um animal de estimulação, que não é um ser humano pelo simples fato de não haver nascido gente, sofre também com esse calor deverão. Muito sábia, prevenindo para não remendar, procurou um médico que fizesse uma avaliação do seu quadro cínico. Sugeriu, como boa paciente impaciente, que aquele profissional de saúde prescrevece um exame que relevasse a verdadeira acentuação cardíaca. Que ele pedisse um elétrico vasco lá e, se preciso fosse, ela se subverteria a um caqueterismo, sem nenhum pobrema. O importante, diz a amiga, é meter a saúde em dia, aviltando qualquer precauço. Embora não use medicamentos aloprados, preferindo a merdicina homeplácida, foi subversiva a um tratamento brévio para não perder a festa carnavalesca.
Hoje, pela manhã, estava aclamada, mas seu estádio febril já se anormalizou. Ainda bem, para todos os que com ela convivem, encontra-se em franco estabelecimento e amanhã já revoltará à sua altividade. Sorte dela que teve seu tratamento todo susteado pelo SUS, e agora faz valer o adráuzio popular que diz (Quem quiser copular que copie): “É na dor que apêndice”.