terça-feira, 31 de março de 2015

Lembro, logo existo!

Tá pensando, companheiro?
― Penso, logo existo!
― Já ouvi essa frase. É do Sócrates, não é?
― Não. A frase não é do Sócrates. É de um outro filósofo. Por que a pergunta?
― Admiro a inteligência e a obra de Sócrates.
― Sócrates não nos deixou nenhuma obra! O que se sabe, se sabe através de outros filósofos.
― Oxente! E o calcanhar? Foi o calcanhar que o tornou famoso.
― Ah, você deve estar se referindo a Achiles. Isto aí já é assunto sobre os mitos. Mitologia grega.
― Bom, para mim ele também é um mito.
― Peraí, vamos colocar ordem na conversa: de qual Sócrates, afinal, você está falando?
― Estou falando de Sócrates, o idealizador da Democracia Corinthiana!
― Bem, agora que tudo está claro como a luz do sol, posso explicar sobre o “Penso, logo existo!”
― Então explique. Porque eu existo e quero entender. Quem disse isso?
― Foi René Descartes (Dêkart)...
― Descarto não. Agora eu insisto em saber.
― Eu disse Descartes. Filósofo, físico e matemático francês...
― Um filósofo, físico, matemático e disse só isso, uma coisinha de nada!?
― Permita-me discorrer sobre o seu pensamento...
― Agora deu! Discorrer sobre o meu pensamento!?
― Não. Sobre o pensamento do filósofo Descartes. Ouça e medite a respeito:

Penso, logo existo! "Considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa.
E notando esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava".

― Então isso é Descartes?
Descartes, sim. De ponta à cabeça!

"Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar à cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas".

― E de quem é essa voz?
― Essa é a voz de Sócrates!
― Oxente! E ele tá vivo? Que voz! Parece até William Bonner!
― Sócrates não morrerá jamais!
― Mas precisava vir desse jeito, sem avisar...
― Você não gostou das verdades de Sócrates?
― A verdade é que se eu soubesse tinha vindo com frauda descartável!
― Vamos sair para além da Caverna. Vamos voltar ao tempo e investigar as causas que contribuíram para o Golpe Militar de 64, no Brasil.
― Danosse! Se essa cabra fosse candidato eu votava nele. Fala bonito demais!
― Vamos ouvir para compreender!

O Golpe é mais embaixo - Há, sem dúvida, uma série de episódios marcantes na vida política brasileira que dão margem e sustentação à existência do Golpe Militar de 64. Essa triste página da nossa história é impressa em 25 de agosto de 1961, após sete meses do governo Jânio Quadros. Mas os rascunhos sórdidos veem da ganância imperialista norte americana. Eduardo Galeano nos revela toda essa sordidez em As Veias Abertas da América Latina, à página 108, no capítulo DENTES DE FERRO SOBRE O BRASIL.

― Pra você o que será que ocasionou o Golpe?
― E eu sei. Eu num tava lá para saber! E mesmo se tivesse: qué qu’eu tenho com isso?
― A Caverna está entranhada em você! Há um componente pouco sabido sobre o Golpe.
― Então desembuche. Se sabe, diga!
― Você ouviu bem? Jânio Quadros aproximou-se dos países socialistas...
― Sim, e daí?
― Daí que ia vender matérias-primas de valor estratégico para países comunistas.
― Então tinha que haver o Golpe, mesmo! Êita raça de comuna desgraçada!
― Sem contar com o fato de haver condecorado Che Guevara, líder da Revolução Cubana. O que aumentou a pressão e a renúncia de Jânio.
― E o que ele disse sobre essa renúncia?
― “Forças terríveis levantaram-se contra mim”.
― Só isso?
― Mais tarde, respondendo à imprensa, ele disse: “Fí-lo porque qui-lo!”
― Êita! Uma merda dessa não deu só um quilo: isso deu quilo e meio!
― Forças ocultas e terríveis levantaram-se contra mim! Foi a grande explicação de Jânio.
― Bom! Ele saiu. E quem ficou no lugar dele?
― Boa pergunta. Como já ouvimos, Jango estava no exterior, na China.
― Ouvimos.
― E que os militares não queriam que ele tomasse posse.
― Ouvimos também
― E você sabe que os militares ameaçaram derrubar o avião presidencial caso Jango desembarcasse em Brasília, para tomar posse?
― Mas por que os militares não gostavam de Jango?
― Jango tinha ligações com os partidos de esquerda, principalmente com o extinto Partido Comunista... 
― E Jango voltou, mesmo com essa ameaça?
― Voltou, sim!
― E a promessa dos militares?
― Oxe! Brizola fez um levante lá no Rio Grande do Sul em solidariedade a Jango...
― E o que Brizola tinha a ver com isso?
― Brizola era cunhado do vice-presidente João Goulart.
― Agora dá pra entender! E como foi esse levante?
― Brizola criou a “Rede da Legalidade”. Sabe o que ele queria com isso?
― Cabra danado. Balançou rede da legalidade e quis derrubar a rede Globo! O que Brizola queria?
― Ele queria o cumprimento da Constituição para garantir a posse de jango, certo!?
― Certo.
― Para tanto Brizola colocou o terceiro exército de prontidão e armou a população...
― E precisava disso?
― É que os militares ameaçaram bombardear o Palácio Piratini, sede do governo, em Porto Alegre.
― E Jango! Conseguiu pousar em Brasília?
― O movimento pela “Legalidade” surtiu efeito. Jango tomou posse.
― Mas o presidente da Câmara Federal... Como é mesmo o nome dele?
― Raniere Mazzilli.
― Sim. Ele já não tinha tomado posse na presidência da República?
― Tinha. Mas Jango ocupou a presidência e o Raniere Mazzilli deixou o cargo que havia ocupado, ferindo os preceitos da Constituição Brasileira.
― Ufa! Ainda bem que tudo acabou em paz...
― Aquele não era tempo de paz. Você ainda vai saber sobre os horrores do Golpe. Como já vimos havia muito interesse por trás do Golpe.
― Você e essa mania de perseguição imperialista, né! Os militares estavam a serviço da Pátria!
― A Guerra-fria e os interesses econômicos de Washington justificavam as atrocidades cometidas contra a soberania de países da América Latina.
― E o que o Brasil tinha a ver com isso. Se era América Latina, deixasse a América se lascar!
― Você ainda vai entender a história.
― Mas conte sem tomar partido. Seja imparcial.
― Diante do impasse da renúncia de Jânio e a posse de Jango, o Congresso Nacional resolveu instaurar o sistema Parlamentarista...
― Tô começando a entender. É verdade que os militares aceitaram a posse desse tal de Jango!?
― É verdade, sim.
― Tá vendo! Você fica com caraminholas contra os militares e eles deram posse ao cara.
― É, mas deram posse no sistema Parlamentarista.
― Mas ele continuou presidente. O que você queria mais, amigo?
― Entenda. Jango continuou presidente, mas seu poder ficou limitado.
― Limitado! Feito crédito de celular. Quando a gente pensa que tem, acabou?
― O poder político era do primeiro ministro: Tancredo Neves! Era esse o nome.
― Acho que já ouvi falar? Tancrêeeee... Ele foi ministro de Sarney, num foi!?
― Tancredo era um político conciliador, do PSD (Partido Social Democrata) mineiro.
― Huuuum! Tô entendendo.
― Na redemocratização foi eleito presidente por um Colégio Eleitoral.
― Colégio? Foi eleito representante de classe, então! E eu nem sabia.
― Assim você não sai da Caverna! Vamos voltar ao assunto!?
― Taí, se o homem era conciliador, é sinal que tava tudo bem. Pra quê mexer mais!?
― A Constituição havia sido estuprada e Jango, em janeiro de 63, fez uma Consulta Popular...
― Pra quê? O que ele queria? Deixasse tudo quieto, né!
― Consulta para que o povo se decidisse pela continuidade ou não do Parlamentarismo.
― E qual foi a decisão do povo? Eita povinho pra gostar de votação!
― Com 82% dos votos o povo escolheu voltar ao Presidencialismo.
― Pronto! Esse tal de Jango conseguiu o que queria. Foi tudo resolvido. Muda de assunto!
― Vamos! Eu tenho uma proposta!
― E qual é a proposta?
― Vamos refletir sobre esse nosso diálogo.
― E isso aqui é um diálogo?
― Claro que sim. Hoje é dia de relembrar aquele período obscuro da nossa história?
― É..., bom..., quer dizer..., sei lá...
― E para que nunca mais se repita!

Estórias que mamãe contava

Taí o nosso Camonge!
Sabem aquela síndrome pueril? Não cessa nem com reza forte! Agora mesmo me pego “ouvindo” as histórias que mamãe contava. Melhor ainda com aquele cenário de invernia, água caindo da biqueira, plantação verdejante, cheiro de terra molhada. Dos trovões nem quero lembrar! Eram tenebrosos, trazidos por aqueles raios que cortavam os céus e clareavam o mundo. “Aquilo era São Pedro com seus burrinhos carregando água em botijões céu acima, céu abaixo”, ela nos confortava certamente para abrandar o medo. E nem dava para duvidar, era mamãe quem nos contava, tinha toda a sabedoria possível. Impossível era "duvidar", palavra ainda não existente em nosso vocabulário.
Naquele universo os contos brotavam de todos lados, vindos de além mar - Hans Christian Andersen com seus contos dinamarqueses - ou das bandas de cá debulhando as estórias de Monteiro Lobato ou contemplando os cordéis de autores nordestinos, a exemplo de Leandro Gomes de Barros, Manoel Camilo, João Martins de Ataíde e outros. Também de além mar ela debulhava um conto cordelístico referendando Camões, maior poeta português de todos os tempos, chegando até nós na figura popularesca de Camonge. Pois bem, além dos célebres contos brasileiros a exemplo das Proezas de João Grilo e Pedro Malazarte éramos apresentados às Trinta perguntas do Rei e as repostas de Camões: Leitor, se você ouvir / Esta pequena proposta / Da descrição de Camões, / Acha interessante e gosta / Constatando o que ele fez / Sorrir de cair de costa. / Camões foi um enjeitado / Ninguém sabe onde nasceu / Dizem que foi encontrado / Na porta de um fariseu  / Num dia santificado  / Do santo Bartolomeu.
Após esse introito mamãe dava conta do conto que se segue com riqueza de rima e métrica de Severino Gonçalves de Oliveira, seu criador: Camões disse:- Senhor rei / As suas ordens estou / Pergunte com rapidez / Que alguém ali me chamou / O rei disse: - então escute / E pra ele assim falou:
Camões você me responda / E aqui perante o povo / Este problema que eu trago / É antigo e não é novo / Não se quebra com marreta / Mas se quebra com um ovo?
Camões disse: - Senhor rei / Esta pra mim é comum / Durante o ano têm muitos / Mas eu nunca guardei um / Digo com toda certeza / Que é um dia de jejum.

Ouçam aquele sax!

  Diogo Batista: grande seresteiro
- É ele, é ele, é ele!
- Ele quem, homem de Deus?
- É Zé Boneco. Escutem o som do saxofone!
- Tais delirando, Diogo. Zé Boneco escafedeu-se, tá lá no Rio...

Dia já amanhecendo e aquele "mói" de gente aguardara transporte para o regresso à Esperança. Dava para ver a barra da aurora brigando com a escuridão da madrugada. Era um domingo, a noite do sábado ficará para trás com o enfado da seresta e bebericagens. Não era fácil encontrar transpor àquele tempo, o jeito era esperar no breu do tempo. Fazia-se um silêncio melancólico, sem cantos nem encantos de ave alguma. Nem mesmo os galos se ouvia anunciando aquele amanhecer que se demorara por chegar, nos conta Vicente Simão, um dos presentes naquele episódio em terras de Campina Grande. Do nada se vê Diogo Batista, seresteiro de ouvidos mais que apurados, pedir silêncio como se maior silêncio fosse possível. Todos estranharam aquela atitude até que Diogo insiste e, de pronto é atendido, mesmo a contragosto de quem nada entendera. Silêncio pra quê?!
Zé Boneco, exímio saxofonista, havia se ausentado de Esperança fazia quase três décadas. Há muito não se tinha notícias suas. Sabia-se, era fato, que se fora para o Rio de Janeiro e que lá fizera carreira de músico, tocava nos mais requintados espaços das noites cariocas. Mas notícia mesmo de onde se instalara e como vivera, nenhuma. Cartas, telegramas, telefonemas não havia como sinal de vida. Até mesmo os parentes mais próximos desconheciam algo que se pudesse indicar paradeiro. Morar no Rio de Janeiro, à época, era como se se estivesse no Japão, outro lado do mundo. Pau-de-arara era transporte comum e levava dias intermináveis para se chegar àquele destino, à Guanabara então capital do país. Mas Zé Boneco morava lá, se sabia.
Então se fez ainda mais silêncio para contemplar os ouvidos de Diogo. Aquele seu gesto de mãos ao “pé-da-orelha” era gesto indicativo de algo estranho ocorrera nas cercanias dali. Diogo foi-se afastando do grupo, chegou ao meio da estrada que hoje marca o Ponto Cem Réis como limítrofe dos bairros do Alto Branco e Conceição. Caminhou, parou, escutou! Todos o acompanhavam com olhar de estranheza extrema até que Diogo despejou seu contentamento que soava como loucura aos demais: "É ele". Então seguiram o som. A três quadras dali estava o saxofone soprado com a arte de Zé Boneco.
Incrível, mas Diogo distinguiu aquele sopro três décadas após ouvi-lo na última serenata.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Meninos sabidos!

Logo/Megafone e mestre Dominguinhos
Algo de muito interessante (revolucionário) acontece em Campina Grande. Essa "meninada" do Megafone tem um cuidado desmedido com o que temos de riqueza cultural, principalmente no que tange à nossa musicalidade. O melhor de tudo isso é que não fazem apenas por fazer ou por querer. Sabem exatamente o que querem e como querem com extremo profissionalismo.
Uma das riquezas que passam despercebidas numa obra de arte - de qualquer que seja a vertente – é o momento da criação. A inspiração que teve o artista, em que instante, e a que se deve tal inspiração para materializá-la numa pintura, numa cerâmica ou argila, num poema ou numa partitura. É preciso muita inventividade para essa criação. E no caso da música, mais precisamente, temos uma vastidão de elementos que concorrem para tanta produção mundo afora, mas essa vastidão limita-se a apenas sete notas musicais. No mundo do verso, poesia ou prosa, por exemplo, tem-se também um mundo a contemplar e dele se fazer a abstração necessária à criação. Mas carece, também, muita inventividade. Eu mesmo, mais das vezes, tenho a impressão que tudo que se tinha por criar já foi criado até que me deparo com algo inusitado, genial. Então me bate a ideia de que muito há ainda por se criar.
Há bem pouco tempo contei aqui “Tareco e Mariola”, dia 12 de março último, onde fazia referência à composição de Petrúcio Amorim, umas das mais célebres do cancioneiro popular nordestino. Ali relato como nascera e qual o episódio que motivara tão bela criação. Babo em saber que Cartola, um simples ajudante de pedreiro (sem aqui desmerecê-los e entendendo que aí está a grandiosidade da obra), compõe nada mais, nada menos que “O mundo é um moinho”. Numa visita ao blog Análise sobre música brasileira, leio que “Várias são as histórias sobre a criação dessa canção. As mais famosas são a de que Cartola escreveu a letra após descobrir que sua filha estava se prostituindo e a versão de que Cartola conheceu um rapaz que se apaixonou por uma menina, levou-a para casa e depois ela quis ir embora. Como não se tem nenhuma certeza de qual história é a verdadeira, o melhor mesmo é ressaltar o grande valor que essa música tem na história das músicas brasileiras”.
É exatamente aí que entram os inovadores, intrépidos, inteligentes, jovens e talentosos meninos do megafone. Com eles ganha nossa arte, ganhamos todos nós.

sábado, 28 de março de 2015

Triste do bicho...

Meu feijão furado e Arraes após deposição: Golpe de 64
Lá em casa se comia feijão furado, naqueles tempos! É preciso lembrar todos os estragos que fizera em nossas vidas o golpe militar de 1964. Era ainda criança, contava nove anos de idade, mas lembro de ouvir pelas ondas da Rádio Jornal do Commercio o governador Miguel Arraes de Alencar “esmurrando” seu birô de trabalho e alardeando aos quatro ventos que não renunciaria. Só sairia do Palácio do Campo das Princesas – morada governamental – pela porta que entrara ou preso. Não sei se saiu pela porta da frente, mas saiu em um fusca detido que fora. Antes, porém, deixou sua mensagem lida aos microfones da JC: “Sei que cumpri até agora o meu dever para com o povo pernambucano, sei que estou fiel aos princípios democráticos e à legalidade e à Constituição que jurei cumprir. Deixo de renunciar ou de abandonar o mandato, porque ele está com minha pessoa e me acompanhará enquanto durar o prazo que o povo me concedeu e enquanto me for permitido viver”, disse Arraes já deposto. Aquela saída de fusca não ofusca sua trajetória, ao contrário do que muitos pensam.
Líder sindical que era, meu pai teve que fazer estripulias para se ver livre dos militares. Funcionário efetivo da Rede Ferroviária do Nordeste, teve salário e outros ganhos reduzidos. As intempéries daqueles tempos não foram favoráveis ainda mais com a calamidade instaurada pela enchente de 1966, onde o Rio Tejipió arrastou o barraco que nos abrigava. Aquilo não era moradia, era esconderijo, à beira do riacho, local a esmo e de difícil acesso. Foi ali que vi ir embora, de uma vez por todas, a vida tranquila que levávamos.
Algum tempo mais tarde fui entender o porquê dos meus pais não frequentarem a feira-livre de Cavaleiro, distrito de Jaboatão, antes algo tão corriqueiro. Eu, filho mais velho dos homens, era incumbido de “fazer a feira”. Feijão, batata doce, farinha e muita piaba seca. Nada mais havia na lista que minha mãe me dera àquela empreitada. O feijão encomendado era de qualidade duvidosa, mas estava de acordo com o orçamento. Era dureza ter que comer aquela “gororoba” com uns bichinhos saídos dos grãos cozidos, temperados sei lá com quê. A grita era enorme protestando o prato servido quase sem atrativo. A piaba salvava os cardápios do café da manhã, almoço e janta. Daí o protesto:
- Mamãe, quero esse feijão não. Tem bicho dentro!
- Coma calado, meu filho: Triste do bicho que o outro engole!

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sem querer querendo

     Saudável inocência nos tempos pueris de jogos e brincadeiras
Emilly Emanuelle é essa menina da foto ao lado. Somos, por assim dizer, seus avós postiços. Desde seus primeiros meses que convive conosco e “manda” no pedaço. O verbo mandar, aqui empregado, está mais que em sentido figurado, senão não faria sentido. O fato é que Emilly preenche aquele espaço de quem (ainda) não tem um neto para curtir nem compartilhar. Já escrevi sobre ela num episódio em que envolveu Juraildes Cruz, um poeta do Centro-Oeste, compositor de “Meninos”, obra prima mais conhecida pela interpretação de Xangai: “Vou pro campo / no campo tem flores / nas flores tem mel / e à noitinha estrelas no céu, no céu, no céu...”.
Hoje, como todas as sextas-feiras – quinze em quinze dias -, ela chega e já “dita” o que queremos assistir na programação televisiva. Eu, pra falar a verdade, nem de TV gosto, mas ela merece nossa atenção, algo tão especial que abro mão até do não gostar de televisão para estarmos juntos. Então pergunto o que iremos assistir e sem pestanejar vem a resposta: Chaves! Por mais batido e pastelão que pareça aquilo tem sempre algo pra se ver e sorrir. Sou arredio aos tapas e encontrões que dão e sofrem a dona Florinda, seu Madruga, Kiko, Chiquinha e, por fim, o Chaves. Seu Barriga, por ser gordo, sofre o mesmo bullying que o Chaves, por ser pobre e o seu Madruga, por ser feio. Mas deixemos o politicamente correto de lado. Falemos de criancice tema que, aliás, tenho certa intimidade por viver uma síndrome pueril, lembram?!
Aquelas brincadeiras tão repetidas em Chaves nos remetem a tempos já “tão pretéritos quanto distantes”, diria meu prezado Jerimum. Jogos de bola e botões pelas ruas e calçadas; baleeira ou baleada; barra-bandeira; passar a pedra; esconder a peia; academia ou amarelinha; artista e bandido guerreando com frutos de carrapateira; deslizar em patins de rolimã ou aro de pneu de caminhão; andar de bicicleta de aluguel; jogar pião e bolas de gude. Ah, tomar banho de barreiro com todo o perigo que não conhecíamos. Isto é impagável e até lembrando a gente se diverte. Desculpem-me os velhos de mente, mas quando estas lembranças me ocorrem é um gozo, sem querer querendo!

quinta-feira, 26 de março de 2015

Se essa rua fosse minha

      Aqui jaz uma história de serviço e dedicação
Defendo a tese de que nome de ruas e praças não deveria contemplar quem nunca teve laços com elas. O presidente, governador e prefeito só teriam seus nomes nos logradouros caso houvesse um laço que os ligasse. Seus parentes ou aderentes, nem se fala. As ruas e praças pertencem a quem delas cuida, quem nelas vive e faz uso. Acho ainda mais justificável aquela figura folclórica, seja ela um bêbado, um “doido”, alguém cujo nome dê sentido à placa indicatória: “Rua João Barata”, “Praça Maria Beleza”.
Nelson Andrade de Oliveira, por exemplo, tem seu nome em uma das ruas esperancenses. Foi uma das mais sábias indicações já ocorridas no município. Mas, ao contrário do que muitos pensam, ninguém, ou quase ninguém, o conhece. Aquela placa indicatória faz menção ao empresário do ramo farmacêutico, mas só reconhecido pela alcunha de “Nelson da Farmácia”, cujo empreendimento era mera formalidade, igual Didi de Lita aqui já lembrado. O fato é que Nelson tinha sua farmácia como um detalhe, o que ele gostava mesmo era atender aos transeuntes, pessoas que iam e vinham na empresa de transporte passageiro contígua à Farmácia São Pedro.
Venho à Esperança instruído, ao telefone, por Silvestre que viria a ser meu sogro. Traça-me o percurso e me fala da empresa de transporte que me traria e, enfim, sobre a parada à chegada. “Um senhor irá abordá-lo e perguntar para onde vai. Diga que quer ir à casa de Silvestre Batista”. Tudo parecia combinado. À chegada, ao descer do ônibus, sou abordado.
- Para onde vai, moço?!
- Vou à casa de Seu Silvestre...
Aquele senhor de cabelos prateados nem me deixou terminar:
- Menino, vem cá! Leve esse moço à residência de Silvestre Batista...
O homem Informou o endereço e fui levado por um guri que me servira de pajem até aquele endereço. Um ano depois, de volta à Esperança, eis que desço e o mesmo ritual se repete. Em casa indago de Seu Silvestre quem era aquele parente seu, homem polido no trato com a recepção de quem nem conhecera. Só aí fui informado sobre o abnegado Nelson da Farmácia. A São Pedro era um detalhe naquele cenário. O que ele gostava mesmo era de servir, prestar informação, acolher, comunicar.
Que se cuide da substituição (na placa) do nome de Nelson Andrade de Oliveira. Este é um mero esperancense, ofuscado pela alcunha de Nelson da Farmácia. Se essa rua fosse minha...

quarta-feira, 25 de março de 2015

A primeira perda

Criança famélica                 Josué de Castro
Bigóia era um menino raquítico, filho mais novo de lavradores. Moravam, plantavam e criavam algumas poucas cabeças de gado - que mal alimentavam aquela numerosa família - nos fundos da única padaria do lugar. Eu também era magricela, acho que isso nos aproximava. O futebol, sem dúvida, era outro ponto de aproximação entre nós. Éramos frágeis diante dos meninos de mesma idade para enfrentar o bullying. Mas a bola nos permitia fazer a diferença. Estávamos quase sempre no mesmo lado, mesmo time. 
Tempos depois pude elaborar meu pensamento sobre aquela conjuntura onde vivíamos. Aquela casinha de taipa com paredes pendentes denunciavam as condições de Bigóia, seus irmãos e seus pais. Foi aí que pude entender as condições insalubres daquela gente. Os animais também demonstravam seu estado de carências. Viam-se as costelas desenhadas sob a pele. As vacas mal produziam leite para seus bezerros não desmamados. Era um cenário lúgubre, mas em tempos de criança a gente vê com outros olhos. Não se adentra na agonia alheia ainda que aparente. O mundo era composto pelas horas de acordar, das refeições, das brincadeiras e de dormir.
Naquele dia notei que algo anormal acontecera. Havia gente circulando, ninguém na lida com a plantação nem com aqueles animais famélicos. Não havia alegria nem choro, só um movimento de pouca gente entrando e saindo, nada estava como antes. Eu levara a bola, como de costume, mas fui avisado por colegas que Bigóia não sobrevivera a uma pneumonia. Embora não houvesse choro, o ambiente denunciava tristeza. Era como se fosse normal a partida de um ente. Naquelas condições talvez fosse um alívio pela falta de acesso ao mais básico do básico. Comida, ali, não era item cotidiano. Pelo menos comida que mantivesse o corpo alentando a alma.
E foi assim, sem nenhuma lágrima nos rostos compenetrados, que vi aquela gente se despedindo do meu primeiro amigo fora da ambiência familiar. Só entendi o filme que se passara em minha mente, anos mais tarde, quando encontrei Josué de Castro em sua “Geografia da Fome”.

terça-feira, 24 de março de 2015

Eu sou de um tempo...

Éramos encantados e o belo estava em nós
Era tarde da noite, creio que umas nove ou dez horas, a brincadeira corria solta no meio da rua. Eu ouvia as palmas, parava, olhava e me despedia dos colegas. Era minha mãe avisando o adiantar das horas. Dona do Carmo nem pronunciava meu nome, as palmas eram o bastante entendíveis. Tinha que entrar, tomar banho e dormir. Televisão só se assistia no horário vespertino, programas dirigidos à criançada, ou uma bem amena voltada à família. Havia os filmes violentos a exemplo de Rin tin tin, onde o índio era tido como bandido. Isso é coisa de americano, quase dizimaram toda a população indígena, os Peles Vermelhas.
Dee Brown conta essa sórdida história em Enterrem Meu Coração na Curva do Rio”. Matava-se índio como se fosse brincadeira, a pretexto do progresso montado em trilhos, abrindo passagem às locomotivas. E imaginar que nós – pobres, felizes e inocentes que éramos – torcíamos pelo cachorro Rin tin tin, Cabo Rusty e Sargento O’Hara. Era uma carnificina só. Popeye e Olivia também faziam parte daquela diversão. O marinheiro sofriiiiia até que o espinafre, tomado em doses salvadoras, fizesse o efeito tão aguardado por nós telespectadores.
Havia todo um ritual para aquelas tardes televisivas. Não se via televisão em todos os domicílios, só “rico” possuía uma. E era num saudoso preto e branco. Por “milagre” tecnológico apareceu uma tela com listas coloridas que, colocadas à frente do aparelho televisivo, dava-nos a impressão de uma bela tv colorida. Aquilo era a mais alta invenção humana, uma tv se assemelhando a uma tela cinematográfica.
A meninada chegava cedo, às tardes, para garantir o melhor lugar na janela, meia porta, grade... A casa que possuísse um aparelho de televisão era sujeita àquela romaria. Os mais próximos àquela família detentora dessa modernidade, tinham um acento na sala da casa, mesmo que fosse no chão. Aí a criançada se amontoava para assistir aos seriados: “A ilha misteriosa”, “A máscara do Zorro”, “Os cavaleiros do Rei Arthur”, “Ivanhoé o vingador do rei”. Os desenhos eram igualmente chamativos e inocentes a exemplo de “Manda-chuva”, “Catatau e Zé Colmeia”, “Tom e Jerry”, “Os Flintstones”, “A pantera cor-de-rosa”. O fato é que eu sou de um tempo...

segunda-feira, 23 de março de 2015

Chega me faltou suspiração

Há bem pouco tratei aqui do esquecimento que me acomete. Não sou de me preocupar à-toa, também não faço pouco caso de sintomas que parecem afetar minha saúde. Mas sinto uma luz acesa no que concerne às lembranças recentes. Ao contrário do que muitos pensam, tenho ótima lembrança do que há no mais recôndito da minha memória, mas sou capaz, creiam, de esquecer o que iria acrescentar ao que penso neste instante, sobre o assunto em pauta. Pior que em um comentário aleatório com um companheiro de trabalho, veio a sentença: “Não quero aqui alarmar, mas preciso dizer que procure um geriatra”.
Tanto é que resolvi me informar sobre as causas comuns de esquecimento. Peço socorro ao Google que me remete ao endereço http://www.unicamp.br/unicamp... Vejam o que lá encontrei: “O esquecimento pode ser comum e não ser? O neurologista Márcio Balthazar, pesquisador colaborador do Departamento de Neurologia da Unicamp, afirma que o esquecimento patológico é um mal desse século, mas que sempre existiu. Para ele, o esquecimento pode ser comum, pela falta de atenção. Já o esquecimento patológico não tem cura, mas pode ser tratado com drogas que retardam os sintomas”.
O Dr. Márcio Balthazar vai mais além explicando que “O esquecimento em geral não está, necessariamente, associado à doença cerebral. Em pessoas com idade abaixo de 60 anos, é muito comum queixas de esquecimento, mas que não têm essa ligação. Existem muitas causas de esquecimento em eventos do dia a dia relacionados à ansiedade, que é algo muito prevalente nos dias de hoje. Sintomas psiquiátricos ou psicológicos, como sintomas depressivos, sono insatisfatório, além da ansiedade, podem fazer com que a pessoa diminua a atenção quando executam certas tarefas do dia a dia. Então tendem a esquecer tais eventos. Isso pode não ser doença cerebral”. Aff, chega me faltou suspiraçã!
Eu, por haver esquecido a documentação do automóvel, na sexta-feira, o deixei na retífica Jovesa. Fui buscá-lo no sábado com a tal documentação no bolso. Mas esqueci o controle remoto, a chave. O Fox dormiu na UEPB e hoje, pela manhã, eu o trouxe para casa. Uma blitz, algo que quis tanto evitar, me aborda próximo à Ceasa. Paro, mostro minha habilitação e os documentos do automóvel, muito tranquilo. Até que ouvi, gentilmente, a alerta do militar que me abordara: “Senhor, essa sua habilitação está vencida”. Eu trocara de bolsa e não me apercebera que a nova habilitação estava lá. “Pode seguir, já o abordei antes, imagino que houve um lapso. Peça a ajuda de Jerimum quando arrumar a bolsa”. Chega me faltou suspiração de tanto alívio!

domingo, 22 de março de 2015

Eu queria falar de água

Eu já fiz isso com a dedicação que o trabalho requer
Nada do que aqui escrevo é premeditado. Na maioria das vezes, confesso, o conto me ocorre quando sento diante do meu velho notebook (há tempos que não uso papel e lápis). Quando iniciei meus contos por aqui tinha uma lista de alguns possíveis. Algo me chama a atenção andando pelas ruas ou mesmo nas coisas que leio ou escuto. Mas, pelo fato de hoje ser o Dia Mundial da Água tinha me destinado a escrever sobre. Eu, aliás, tenho motivos de sobra para falar dessa preciosidade, posto que venho me esforçado para usá-la do modo mais adequado possível e reutilizando-a.
Mas não foi sobre água que ouvi, hoje, numa saída rápida pelas ruas da cidade. Sou abordado por um jovem cidadão (gosto dessas abordagens) que sorridente vem em minha direção, já de mão estendida: “É um grande prazer encontrá-lo!”. Aquele cidadão ou estava me reconhecendo, verdadeiramente, ou me achando parecido com alguém bem próximo de si. Usei da boa regra e respondi com reciprocidade àquele gesto. Nos primeiros momentos fiquei esperando um “mote” ou um “gancho” para saber de onde aquele ser tão desenvolto me conhecera. Papo vai, papo vem e ele se derramando em elogios, mas sem que me desse as pistas que eu esperara. Então divaguei (um olho no padre, outro na missa), tentando entender a admiração, até que veio a deixa e caiu a ficha.
Fiz uma viagem na parca memória pra desvendar aquele mistério. Nada havia na conversa que me sugerisse uma lembrança. De onde, então, aquela pessoa me parecia tão chegada? Ah, certamente me ouvira nalgum programa radiofônico. Mas precisa algo mais além da voz. Teria sido da TV Itararé ou de comerciais da dupla Jerimum & Xiquexique? Faz algum tempo que participamos de campanha publicitária, pelo menos aqui na Paraíba. Momentos sôfregos esses de se estar diante de alguém que nos parece familiar, mas não nos damos conta de quem seja.
Até que a conversa toma o rumo esperado com a seguinte dica, ainda segurando minha mão: “Eu admirava ver você de garra daquela pá e daquela enxada. Ficava pensando comigo como pode um cabra tão estudado tá aí, nesse serviço, apanhando metralha”. Foi assim que me desfiz daquele curto mistério. Não antes sem o belo desfecho:
“Mas venha cá e me desculpe: Você tava pagando pena alternativa?”.

sábado, 21 de março de 2015

Esquecimento

Esqueci minha memória em algum lugar por aqui
"Carlos! O nosso próximo encontro será no dia 21 do corrente, o texto está na copiadora do Rogério. Veja como pode fazer a abertura do encontro com alguma poesia, ou, algo ligado à cultura conforme você bem sabe. Abraço. Prof. Dr. Francisco de Assis Batista - U E P B, Dep. de Filosofia e C. Sociais – DFCS".
O texto acima é um lembrete eletrônico para que eu não esqueça a data e, muito menos, de preparar algo para uma pequena apresentação cultural na primeira aula do Curso de Extensão Universitária sob o título Universidade e Campesinato/2015.1. Então me pus a correr para dar conta de um monte de tarefas que ora abraço. É nessas horas que o cérebro me traí e cometo esquecimentos absurdos. O primeiro, concordam todos os que comigo convivem, provoca falta de comunicação. Não ligo nem atendo ninguém, visto que esqueço o celular nas gavetas, na sala de trabalho, na cozinha, no banheiro, no quintal...
Antes de ontem, quinta-feira, fui buscar o carro de Parícia, minha esposa, numa retífica, em Campina Grande. Não o trouxe porque havia esquecido seus documentos. Não quis correr o risco de conduzi-lo sem a tal documentação. Eu fora pego, por havê-los esquecido no último novembro. Como me encontrava muito próximo da UEPB, o conduzi até lá e o deixei para trazê-lo nesta tarde, após a aula acima referida.
Aproveitei a chuva caída no final desta manhã para ajustar alguns pontos da captação d’água em nossa cisterna, o que retardou minha saída à universidade. Fiz os ajustes, tomei banho, me vesti, pus a documentação do Fox no bolso e saí correndo, em seguida. Só na UEPB, precisando acionar o controle a fim de retirar uns impressos de dentro do automóvel, lembrei: Não levara o controle, a chave. Não é só celular que costumo esquecer. Por duas vezes estacionei um automóvel e me fui de ônibus numa dessas vezes, a pé numa outra. Quatro dias sem lembrar onde estacionara o carro, na primeira vez, até que Marco, um empresário esperancense, me lembrasse de onde o deixara. Numa das vezes fiz até B.O., imaginando furto.
De volta da universidade recebo um puxão de orelhas do meu filho: “O Senhor se esqueceu de avisar a Fernando, painho?”. Esqueci Fernando, meu professor de Teoria Musical e Violão. O celular está no carro já faz quatro dias. Mas isto não ficará assim, vou tomar minhas precauções... É caso perdido: Esqueci as precauções que iria tomar!

sexta-feira, 20 de março de 2015

Eu sou de um tempo...

O confrade Evaldo Brasil instiga a mim e ao historiador/poeta Rau Ferreira a escrever – em gotas homeopáticas – algo sob a temática “Eu sou de um tempo... – Versos de um poema em construção”. E inicia, lá no Facebook com a seguinte provocação:
"Eu sou de um tempo em que se usava sacola de plástico pra levar caderno e livro à escola já hoje temos um kit completo gratuito..."
Então me dei o direito (provocado que fui) de complementar:
"Eu sou de um tempo 
Em que o sertanejo calejado 
Era obrigado a cortar terra com pá e picareta 
Em busca do sustento da família 
Nas emergências da vida 
Hoje temos as bolsas que o livra da fome 
E o coloca no Shopping, feiras, mercados..." 
“Eu era feliz e não sabia”, já dizia a canção do célebre Ataulfo Alves. Minha prima Inês me entregava a caderneta e sentenciava: “Vá na bodega de Seu Modesto e traga o que tem aí na lista. Vou cuspir no chão, se você chegar e estiver enxuto, já sabe como é que é, né!”. Aquela minha prima vazia as vezes de Dona do Carmo, minha mãe. Tinha-se respeito por ela e o mandado que saísse a seu modo. Na bodega de Seu Modesto não carecia cartão crédito. Crédito tinha quem comprava e pagava. De lá não se precisava levar uma compota de manteiga, se levava “uma quarta”, correspondente a duzentos e cinquenta gramas. Óleo em lata, só se se quisesse o freguês. 
Comprava-se uma xícara ou um copo, uma medida qualquer sem precisar (por imposição do mercado) comprar lata, saco, compota ou litro, nos formatos de hoje. O pão chegava no balaio de seu Joaquim, um português de sotaque arraigado. A sacola era de pano com o distintivo “Pão”, bordado à mão. O leite amanhecia na janela, acondicionado em garrafa vítrea apropriada sem se correr o risco de furto. Eu sou do tempo...

quinta-feira, 19 de março de 2015

Livro-me Deus!

Prato sobre livro e o pescado da gula
Em recente evento comemorativo aos 10 anos do Projeto Rio Mamanguape, em parceria com a Petrobras, esse imensurável patrimônio de toda a nação brasileira, ouvi alguém em seu pronunciamento citar palavras não muito usuais. Então sugeri a Jerimum - aquele que se apropria de mim para fazer jus à sua existência - escrever algo com vocábulos não usuais já a partir desse introito. Ele, então, com a palavra:
Atacando a sugerência, e já introitando, inicio por começar desertando tudo que vi naquele mag nífico é vento. Resistrei tudim comi a caneta esfreográvida e uma mánica fotográfida. Tinha um auto esfolante pra gente ouvir o som e um pedestre (com três péses) aboiando o microfone sem frio. Um dos felicitadores era da comicidade dos confrades franciscanos. A bênção foi doada por um padre de lá. A paternidade todinha tava presente. Todos, sem nenhuma acepção, usavum óbito marron, cum cordão de imbira branco. Os povos forum saudalizados pelo decepcionista Murib Mais Cedo. Mai cedo mermo começou o apresentamento de um coral de cor deferente. O coral era preto e branco e eu mermo nem ou vi tudo porque sou diesbéltico. Logo avisaro que era de falta doce. Depois teve uma drupa de ré pente. Só vi as nota ré, mas eles estavum tudo assanhado, esquecerum o resto. Depois passarum filme numa tela pano-lâmica de umas 200 amulegada. Teve uma hora que um mói de gente virou mesário. Murib chamava as pessoas pra complô na mesa. Quando anunciava o nome os povo dava palmada. Teve gente que recebeu palmada de pé.
A palavra sinal veio no enferramento. Foi aí que quebrarum um cofre. Cofre break, disserum lá. Pra se traduzir ao pé-da-lepra devesse intender “cofre quebrado”. Pra ninguém notar encherum as meza cum fartura. Um homi vestido de mérdico me of receu Coca-cola, mas adevorvi, sou arrotariano. Na meza onde eutava falarum quera pescado da gula, o prato cheio. Teve gente sem intendê a praca: “Entre e coma”. Mas pelo tanto in gerido até parece que imperpretaram: “Entre em coma”. Eu, para asfaltar essa hipófise,  colo ok logo meu prato em sima dum livro e lembrei do pro vébio: Livro-me Deus!

terça-feira, 17 de março de 2015

O boato do dinheiro

Eu com Simão: A história nas entrelinhas
"Recebi uma herança e não sei o que fazer com o dinheiro. Dá pra comprar uma fazenda de médio porte e umas 50 cabeças de gado”. Nas bodegas de seu Gino e seu Gilvan não se falara de outra coisa senão dessa conversa de Joel Rodrigues. Era pra mais de 100 contos de réis, dinheiro a se perder de vista. Dali a alguns minutos pediu a conta em uma, foi para a outra bodega contando a mesma história. "Vou viajar e não pretendo levar tanto dinheiro. Acho que vou deixar aos cuidados do prefeito Chico Avelino".
Conta-me Vicente Simão que o prefeito Chico Avelino não ficara com quantia nenhuma. Era tudo invencionice de Joel, homem esperto e cheio dessas artimanhas. Com o rumor de tanto dinheiro em casa do prefeito as demais autoridades se reuniram e ponderaram que tomasse todos os cuidados a fim de preservar aquela quantia. Chico Avelino, por sua vez, negava haver recebido qualquer que fosse a quantia. Aquilo era pura falácia. Não levassem aquele boato a sério. Ficassem tranquilos aqueles seus pares.
Quase quatro anos mais tarde reaparece Joel Rodrigues. Desce da marionete saúda alguns transeuntes e entra na bodega de seu Gino que logo lembrou da história: “Veio buscar o dinheiro?”, pergunta. “Sim!”, respondera Joel. Voltara para matar a saudade de sua terra e reaver o dinheiro confiado ao prefeito. Essa conversa logo se espalhou pela cidade inteira. Aquilo passou a incomodar o prefeito, até então sem nenhuma preocupação. Chico Avelino procurou o delegado - Sargento Trigueiro, o juiz de direito e o vigário que rápido intimaram Joel aos esclarecimentos.
A oposição tratou de se aproveitar do momento pré-eleitoral. Joaquim Virgulino da Silva, candidato a prefeito, espremendo-se em meio à multidão, delegacia a dentro, chama a atenção do delegado Trigueiro. Segundo relato de Vicente Simão, Joaquim Virgulino pensara inventar uma história, tirar Joel da enrascada e sair por cima, como se devolvesse a herança em discussão. Chega, então, à presença do delegado, prefeito e demais autoridades, apresentando sua solução para aquele caso. 
- Doutor! Meu amigo Joel cometeu um engano. Ele esqueceu que deixara todo aquele dinheiro aos meus cuidados, sabendo se tratar de um homem honrado e cumpridor dos deveres. Tô certo, Joel? 
- Esqueci não, seu Joaquim Virgulino. O dinheiro que deixei com o senhor eu recebo outra hora. Primeiro quero receber o que eu deixei com o prefeito.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Minha outra amiguinha

Sarinha, 5 aninhos: Minha mais nova amizade
Algumas vezes escrevi sobre aquela minha amiga Clara, lembram? A primeira vez foi em meu “Banzo Dominical”, lá no Facebook, onde ela me elevara à condição de escritor. Em seguida escrevi sobre um bilhete que me escrevera falando de saudade e, mais tarde, sobre a viagem que fizera seu cãozinho Lupi ao asteroide B-612, indo ao encontro do Pequeno Príncipe. Hão de convir, os leitores, que no estado em que me encontro, acometido pela síndrome pueril, tenho mais que conquistar amizades com gente da minha idade. Pois bem, Sara é o nome da minha mais nova amiguinha.
Como estamos ali na mesma faixa etária devo, aqui, apresentá-la como Sarinha. A conheci em um piquenique que fizemos lá nas terras de Pilões, Brejo paraibano. Nosso destino foi caminhar em busca de uma cachoeira, por entre as trilhas, um verde exuberante e pedras com uma variedade de formatos. Um sobe e desce (quase) sem fim. E, enfim, a visão deslumbrante daquela queda d’água banhando toda aquela gente e suas almas. Publicadas aquelas fotos é difícil imaginar que estamos no Nordeste. O Brejo paraibano dá inveja a muita gente mundo afora com sua riqueza natural e uma flora que serve à visão e, também, à mesa com fartura.
Aquela criaturinha – falo de Sara – estava à minha frente, rodeada de parentes e amigos e não correra nenhum risco. Mas vou eu ao seu encontro e ofereço a mão para tirá-la daquilo que ela imaginará perigo. Estava com água pelo queixo e, nesses momentos, perde-se a segurança da terra firme. Ela respondeu ao gesto, segurou minha mão, veio aos meus braços, caminhamos uns dois ou três passos até que se sentiu segura pisando na areia da piscina natural de água corrente e gostosa de se sentir. Ali travamos um diálogo que se repetira noutros momentos do passeio: - Qual o nome de você? - Meu nome é Carlos! - Você sabe o meu nome? - Sei. Seu nome é Sara! - Sabe o nome do meu vô? - Sim. É Milton! - Sabe o nome da minha vó? - Sei também. É Nice! - Sabe que ela tá no céu? - Sei! - Você é muito legal!
A mesma frase eu já escutara, há alguns anos. Hugo, neto do meu cunhado Beethoven, chorava que chorava, nas últimas horas da noite. Eu, não aguentando aquela situação, o pus nos braços e caminhei inúmeras vezes, pela sala de casa, cantando uma canção de ninar. Já quase me desesperava quando ele (do nada) parou o choro, ergue-se à minha frente, pós sua mão em meu queixo e disparou: - Sabe, você é um cara legal!