domingo, 14 de setembro de 2014

Vivência


Hoje, pela manhã, algumas décadas mais tarde, curtindo o mar de Cabo Branco, escutava uma música que me remeteu a essas tão remotas lembranças. Aquela melodia, aquela letra me transportaram àquele "arruado", onde bem de longe se ouvia o canto do Procnias nudicollis, o popular “ferreiro”, o pássaro araponga. Aquela casa rodeada de árvores e gaiolas nos alpendres enchiam nossos olhos de espanto e prazer com suas maravilhas. Aos 12 anos não tinha a mínima noção de ecologia, nem a concepção de que aqueles passarinhos nos encantariam muito mais se soltos estivessem na natureza.

Estávamos na segunda metade dos anos 60. Seu Orestes cuidava de suas gaiolas e dos apiários naquela casa grande de esquina, lá na Rua Guanabara, em Tejipió. Seu Orestes era um homem de fisionomia fechada, calvície bem acentuada e seus poucos cabelos brancos. A dona da casa, dona Rosa Álfaro de Vasconcelos, era mulher prendada nas artes culinárias. Lá comprávamos mel das abelhas de Seu Orestes, dona Rosa nos atendia com toda presteza. A compra do mel era uma bela desculpa para ouvir, daquele homem de feições rudes, seus conselhos e ensinamentos sobre como lidar com aves e abelhas. Em minha mente de criança seu Orestes era um coronel, com aqueles trajes sempre em linho branco e sua cadeira de balanço empalhada.

A música que tocava os meus ouvidos e os de Evaldo Brasil intitula-se Vivência, composição dos anos 70, dos meninos sabidos da Banda de Pau e Corda: “Quem nasceu lá e viveu / Crescendo percebeu / O canto do ferreiro / Da casa do doutor / O velho mensageiro / Das cartas de amor / O homem, o vassourão / Limpando o chão da manhã / Sabe, crê e chora  / Vive cada hora / No canto do ferreiro / Da casa do doutor...” Aí me perdi no tempo, carecendo que o camarada Evaldo me despertasse para o mundo real, onde outra canção já enchia a casa de poesia. Entro em novo êxtase ao ouvi-la: A Banda! Era Chico Buarque que, sem pedir licença nos convidava a vê-la passar. Ao contrário do que muito pensam, havia licença sim. Chico tem toda licença poética!

https://www.youtube.com/watch?v=g_u3Y-t1B-4

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